Adaptação e equilibração
Com o conceito de equilibração, Piaget demonstrou que a Inteligência deve ser confrontada para evoluir
Elisângela Fernandes (novaescola@fvc.org.br)
Novos discípulos Os estudos de Piaget foram continuados por diversos pesquisadores, como a nipo-americana Constance Kamii (à direita, em foto de 1965), que os aplicou à Matemática
Conseguir o equilíbrio, atingir uma posição estável após superar dificuldades e sobressaltos. Esse é um processo básico na trajetória do ser humano, uma ação continuada que permite, a um só tempo, sua evolução e sua sobrevivência. Para suprir as necessidades básicas (como saciar a fome), o homem precisou enfrentar situações inéditas (para ficar no exemplo da nutrição: aprender quais frutos eram comestíveis, desenvolver instrumentos de caça e criar processos industriais para a esterilização de alimentos). A obra de Jean Piaget (1896-1980) defende que esse processo também ocorre com a inteligência. Influenciado pelas teorias evolutivas da Biologia, o cientista suíço demonstrou que a capacidade de conhecer não é inata e nem resultado direto da experiência. Ela é construída pelo indivíduo à medida que a interação com o meio o desequilibra - ou seja, o desafia -, exigindo novas adaptações que possibilitam reequilibrar-se, numa caminhada evolutiva. A inteligência humana se renova a cada descoberta.
O argumento de Piaget é que, desde o nascimento, a criança constrói infinitamente suas estruturas cognitivas em busca de uma melhor adaptação ao meio. No começo de seus estudos, ele utilizou o termo "adaptação" para nomear o processo pelo qual as crianças passam de um nível de conhecimento simples a outro mais complexo. Alguns anos mais tarde, optou pelo conceito de equilibração e, mais tarde, à ideia de abstração reflexiva. Como desses três sinônimos equilibração é o termo mais conhecido, é a ele que vamos nos referir ao longo da reportagem.
Sua ocorrência se dá por meio de duas etapas complementares. A primeira delas, chamada de assimilação, é uma ação externa: consiste em utilizar os chamados esquemas de ação (formas como interagimos com o mundo, como classificar, ordenar, relacionar etc.) para compreender as características de determinado conceito. A segunda, a acomodação, é um processo interno: diz respeito à construção de novas estruturas cognitivas (com base nas pré-existentes, mas ampliando-as). Isso permite assimilar a novidade, chegando a um novo estado de equilíbrio.
O avanço intelectual nem sempre ocorre
Não é sempre que a equilibração é possível. Há casos em que, ao ser desafiada a compreender determinada informação, a criança mostra-se perdida ou desinteressada. "É o que ocorre quando perguntamos algo que está completamente fora do campo de compreensão da criança. Em situações como essa, em geral, ela simplesmente ignora a proposta de trabalho ou muda de assunto", explica Orly Zucatto Mantovani de Assis, professora aposentada e coordenadora do Laboratório de Psicologia Genética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Em outras ocasiões, a criança pode entender parcialmente o novo, deformando alguns de seus aspectos para que eles caibam no seu modo de compreender - ou, para falar de um jeito mais técnico, em seus esquemas de assimilação. Por exemplo, uma criança pode pensar, por intuição ou analogia, que o gato é um ser vivo porque se movimenta. Da mesma maneira, conclui o pequeno, a árvore também é um ser vivo, pois suas folhas balançam ao sabor do vento. Apesar de a ideia de que animais e vegetais possuem vida ter sido assimilada, o raciocínio não está adequado porque alguns aspectos foram deformados - quando ela perceber que o movimento do gato é autônomo e o da árvore é resultado do vento sobre as folhas, haverá outro processo de equilibração, que tornará esse conhecimento (sempre provisório e passível de ampliação) mais correto e complexo.
Há, finalmente, situações em que ocorre a chamada "equilibração majorante", quando o indivíduo constrói as estruturas mentais que possibilitam subir de nível cognitivo - ou seja, compreender algo novo. O papel do meio (família, escola etc.) é fundamental nesse processo. Imagine duas bolas de argila com o mesmo peso e tamanho. Ao ver uma delas ser alongada, resultando num tubinho, uma criança afirma que a mudança da forma do objeto resultou na diminuição da sua massa. Com a informação trazida por esse erro (a de que ela ainda não construiu as estruturas cognitivas responsáveis pela noção de conservação da substância), é preciso propor desafios para mostrar a inconsistência da explicação.
É o que ocorre quando uma criança observa a mesma quantidade de água em dois copos iguais, de mesma altura e mesmo diâmetro. Em seguida, um dos copos tem todo o seu conteúdo transferido para outro de mesmo volume, porém com altura menor e diâmetro maior. A tarefa da criança é responder se a quantidade do líquido se mantém ou não. Dessa vez, ela acerta. Em outras palavras, houve equilibração majorante, com a criação de estruturas disponíveis para a solução de outros problemas similares.
O conceito de equilibração na sala de aula
Apesar de não ter sido concebido num ambiente escolar, o conceito de equilibração ecoa diretamente na sala de aula. Juan Delval, aluno de Piaget e atualmente professor da Universidade Autônoma de Madri, na Espanha, explica que a ideia reforça a diferença entre ensino e aprendizagem: aquilo que cada estudante aprenderá não é exatamente o que o professor verbaliza em sala de aula, nem mesmo o que ele espera que seja assimilado. "A aprendizagem depende dos conhecimentos anteriores de cada um e de suas experiências. Para ampliá-la, além de propor situações que desestabilizem os conhecimentos estabelecidos,é preciso que eles se sintam motivados a realizar um esforço cognitivo para superar o problema", diz.
O conceito de equilibração também provoca reflexões sobre as formas de ensino mais efetivas, que possibilitem a todos avançar. Dificilmente um aluno compreenderá que a Terra é redonda, apenas porque ouviu a professora falar que o planeta se parece como uma laranja (na verdade, se divulgada isoladamente, a informação pode até entrar em conflito com a experiência intuitiva de que o planeta é plano, ou levantar questionamentos sobre por que as pessoas na parte de baixo do globo não caem). Ele pode até decorar a informação, mas ela não será significativa. Para que todos possam avançar, a pesquisadora argentina Delia Lerner defende situações-problema que os levem a investigar, discutir, refletir, levantar questões e formular hipóteses, assumindo uma postura ativa em seu desenvolvimento.
Esse reconhecimento, porém, não reduz a importância do professor. "Aceitar que as crianças são intelectualmente ativas não significa supor que o educador é passivo. Pelo contrário, significa assumir modalidades de trabalho que levem em consideração os mecanismos de construção do conhecimento", diz Delia no livro Piaget - Vygostky, Novas Contribuições para o Debate.
Trecho de livro
"Em uma perspectiva da equilibração, deve-se procurar nos desequilíbrios uma das fontes de progresso no desenvolvimento dos conhecimentos, pois só os desequilíbrios obrigam um sujeito a ultrapassar seu estado atual e procurar seja o que for em direções novas."
Jean Piaget, no livro O Desenvolvimento do Pensamento
Comentário
De acordo com o ponto de vista de Piaget, as situações que colocam em xeque aquilo que o indivíduo já sabe são as fontes da evolução das estruturas cognitivas. Sem elas, não haveria o processo de equilibração ("fontes de progresso no desenvolvimento dos conhecimentos"). Entretanto, é importante ressaltar que, ainda que as situações desestabilizadoras possuam um papel desencadeador (levando a pessoa a refletir sobre o desafio), para que haja aprendizado, é necessário que o sujeito tenha um papel ativo, tomando o problema para si e realizando um esforço cognitivo para superá-lo.
Questão de concurso
Secretaria de Educação do Distrito Federal, 2003
Concurso para professor de Arte
"Os significados que o aluno finalmente constrói são, pois, o resultado de uma complexa série de interações nas quais intervêm, no mínimo, três elementos: o próprio aluno, os conteúdos de aprendizagem e o professor. Certamente, o aluno é o responsável final da aprendizagem ao construir o seu conhecimento, atribuindo sentido e significado aos conteúdos do ensino. Mas é o professor quem determina, com sua atuação, com o seu ensino, que as atividades nas quais o aluno participa possibilitem maior ou menor grau de amplitude e profundidade dos significados construídos e, sobretudo, quem assume a responsabilidade de orientar esta construção em determinada direção".
César Coll Salvador, Aprendizagem Escolar e Construção do Conhecimento (com adaptações).
Com base nas ideias expressas, classifique os itens abaixo em certo ou errado:
a) O papel do aluno no processo ensino/aprendizagem é o de receptor das informações selecionadas pelo professor com base no currículo da escola.
b) O papel do professor é central e concernente à abordagem tradicional de ensino.
c) Os conteúdos de aprendizagem são intrinsecamente passíveis de interpretação, cabendo, no entanto, ao professor a tarefa de garantir que se aproximem ao máximo do formalmente aceito do ponto de vista científico.
Respostas: a) errado, b) errado e c) certo.
Comentário
Na perspectiva construtivista, em que o aluno tem papel ativo (e não de receptor), o docente é corresponsável pela aprendizagem, elaborando atividades e determinando como serão trabalhadas. Quanto ao conteúdo, ainda que as compreensões variem, é preciso buscar situações para que todos se aproximem ao máximo da ideia correta.
Resumo do conceito
Adaptação e equilibração
Elaborador: Jean Piaget
Utilizados como sinônimos pelo pesquisador suíço, os termos se referem ao processo de ampliação de conhecimentos, resultado de duas etapas indissociáveis: a assimilação (interação com o meio, como forma de compreender um novo conteúdo) e a acomodação (um processo interno de construção de novas estruturas mentais que possibilitarão atingir um patamar superior de conhecimento).
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